A gênese do Bairro Da Paz
A origem do Bairro da Paz se deu em 1982, quando excluídos do mercado imobiliário ocuparam uma área contígua à Avenida Luís Viana Filho, mais conhecida como Avenida Paralela, nas proximidades do bairro de Itapuã. A ocupação, convencionalmente tratada como “invasão” pela imprensa burguesa, passou a se chamar Malvinas, pelo fato de ter começado na época da guerra entre a Argentina e a Inglaterra pela posse das Ilhas Malvinas. O trabalho se voltou não somente para a história da luta dos moradores pela fixação naquelas terras pretensamente particulares, mas também para a história da propriedade destas terras e para os interesses político-financeiros dos proprietários.
O terreno ocupado pelos moradores da Malvinas integrava a chamada Fazenda Itapoan, dos herdeiros de Frederico Roriz da Costa e posteriormente de Edmundo da Silva Visco. No entanto, a estes herdeiros somente pertencia o monopólio do uso das terras, o que juridicamente é chamado de “domínio útil”. No entanto, a propriedade do imóvel, de fato, pertencia ao município de Salvador desde Tomé De Souza. O termo jurídico que caracteriza esse tipo de posse é “domínio direto” ou “domínio pleno”. Assim, há duas formas de possuir um mesmo terreno, o que consiste na chamada “enfiteuse”, existente desde as Capitanias Hereditárias. Em 1983, a “invasão” é remanejada. Só que, em 1986, uma nova ocupação refaz Malvinas, que se fixou e perdura até hoje como um bairro pobre.
A história do Bairro da Paz é uma intrigante saga, dentre as muitas de Salvador, em que massas de desempregados ou subempregados, principalmente imigrantes, tiveram que “invadir” áreas ociosas para morar em construções feitas por sua própria força de trabalho. Foi desta forma que se deu o crescimento da capital: de um lado, o latifúndio urbano sendo transferido para as garras dos especuladores imobiliários. De outro, os “invasores”, que se atiravam num processo árduo de luta miúda e teimosa, a começar pela resistência às expulsões, depois contra as condições precárias e subumanas em relação aos padrões normais de sociabilidade – contra a chuva, os desabamentos das encostas, contra a ausência de estrutura básica, como água, esgotamento e energia elétrica, contra os charcos dos vales internos – e contra a violência policial e pressões judiciais e governamentais referentes ao despejo.
Isso mostra que a questão habitacional não se restringe ao problema do acesso à casa, já que o acesso à terra precede a possibilidade de construção da moradia e está envolvido por outros aspectos do contexto urbano, como os meios de consumo coletivo – infraestrutura sanitária, de transportes e serviços. Desta forma, os cartões-postais de Salvador retratam as disparidades entre os arranha-céus e as encostas e baixadas vestidas de barracos mal estruturados, prestes a desabar por não terem nenhuma infraestrutura de correção do solo, como a drenagem, e por estarem sempre vulneráveis à erosão.
Esses foram os efeitos do “milagre econômico brasileiro”, que agravou os contrates entre a massa de pobres e a concentração de riqueza. Maura Véras, em seu artigo Sociedade Urbana: desigualdade e exclusões sociais, cita Milton Santos para explicar a geografia humana numa cidade capitalista: “cada homem vale pelo lugar onde está. O seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território (...) A possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está”. Através desta avaliação de Milton Santos, Maura Véras afirma que, numa cidade capitalista, os interesses da classe hegemônica remodelam o espaço urbano, através de um nomadismo forçado dos desterrados, desalojados e até mesmo de desapropriados.
Esses foram os efeitos do “milagre econômico brasileiro”, que agravou os contrates entre a massa de pobres e a concentração de riqueza. Maura Véras, em seu artigo Sociedade Urbana: desigualdade e exclusões sociais, cita Milton Santos para explicar a geografia humana numa cidade capitalista: “cada homem vale pelo lugar onde está. O seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território (...) A possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está”. Através desta avaliação de Milton Santos, Maura Véras afirma que, numa cidade capitalista, os interesses da classe hegemônica remodelam o espaço urbano, através de um nomadismo forçado dos desterrados, desalojados e até mesmo de desapropriados.
Por isso, em 1983, Malvinas foi remanejada. Na lógica do capitalismo predatório, aquele trecho de expansão da cidade, tão valorizado, não deveria ser ocupado por uma camada incapaz de consumir habitação, de participarem do mercado imobiliário formal. Em 1986,VÉRAS, 2003.2 SANTOS, Milton, 1987, p. 81. In.: VÉRAS, 2003.3 VÉRAS, 2003, p. 89. Entretanto, o ressurgimento da Malvinas reflete o acirramento da urbanização espoliativa e excludente, mas também que a luta social organizada estava explícita no espaço geográfico, social e político.
O interesse pelo tema surgiu a partir da insatisfação sobre as versões da verdadeira história do processo de especulação imobiliária dos terrenos da Avenida Paralela. Apesar de o caso do Bairro da Paz não ser o mais antigo episódio dos inúmeros que compõem a história da propriedade dos terrenos adjacentes à avenida, ele se evidencia como um dos mais chocantes, porque deixou e deixa transparecer a dinâmica das relações entre as oligarquias locais e poder do Estado em detrimento da função social da terra e do patrimônio e interesse públicos. O Bairro da Paz não é o único que tem uma origem conflituosa na cidade de Salvador, mas foi um dos que conseguiu criar grande polêmica por ter-se fincado em terreno de grande valor imobiliário, assim como de barganha política. Tudo começou em 1982, quando trabalhadores e desempregados provenientes de cidades do interior da Bahia e de outros bairros de capital começaram a montar seus barracos num terreno desocupado nas margens da Avenida Paralela, o qual era intercessão entre duas áreas nobres da cidade: a orla marítima e a própria Avenida Paralela. Na tentativa de assegurar a posse das terras, os proprietários do domínio útil tiveram a conivência do Estado para o uso do aparato policial em função de interesse privado. Muitos barracos foram incendiados durante a noite. Moradores chegaram a reerguer seus casebres por dez vezes. Cordões humanos foram feitos diante de tratores de empreiteiras interessadas pelo local. Houve extermínio de lideranças e infiltração de agentes denunciadores delas. Pessoas morreram eletrocutadas tentando construir ligações ilegais de energia, porque o poder público negava os serviços básicos como forma de pressão.
Na década de 1990, a Fundação Dom Avelar chega à invasão. Obras sociais e organização política convivem juntas. Os casebres de pau a pique começam ser substituídos por pequenas casas de bloco e cimento, tornando-se mais resistentes. A ordem católica de Mantova, Itália, envia a missionária Ernesta Cornacchia para a chamada “maior favela da capital baiana”. Organizações Não Governamentais (ONGs) e centros de estudos sociais também ocupam a Malvinas. Faculdades particulares e fundações privadas direcionam “sua obrigação do papel social” para o Bairro da Paz, inclusive entidades ligadas às oligarquias detentoras da maior parte dos terrenos da Paralela.
Na década de 1990, a Fundação Dom Avelar chega à invasão. Obras sociais e organização política convivem juntas. Os casebres de pau a pique começam ser substituídos por pequenas casas de bloco e cimento, tornando-se mais resistentes. A ordem católica de Mantova, Itália, envia a missionária Ernesta Cornacchia para a chamada “maior favela da capital baiana”. Organizações Não Governamentais (ONGs) e centros de estudos sociais também ocupam a Malvinas. Faculdades particulares e fundações privadas direcionam “sua obrigação do papel social” para o Bairro da Paz, inclusive entidades ligadas às oligarquias detentoras da maior parte dos terrenos da Paralela.
Concomitantemente a essa saga dos ocupantes, nos bastidores oficiais, processos de espólios dos terrenos da Avenida Paralela somem dos cartórios, sendo que alguns destes foram incendiados, como o sinistro do Liceu de Artes e Ofício, em 1968. A informatização do setor judiciário do Estado, na década de 1980, teve conseqüências intrigantes: antigos proprietários que alegavam a posse das terras e cobravam dos cartórios os processos dos espólios, repentinamente encontraram suas antigas propriedades em nome de outros, notadamente a Construtora OAS.
Documentos que esclareceriam grande parte da tramitação legal dos terrenos também desapareceram durante o processo de informatização da Justiça Baiana, que aconteceu entre 1987 a 1989, quando estes documentos, sem passar pelo registro do novo sistema, sofreram mudanças de prédio em prédio.
Esses são apenas alguns dos muitos episódios que marcaram o processo de ocupação dos terrenos da Paralela pela elite imobiliária, sendo que um dos trechos mais privilegiados, por excluídos habitacionais. Vendas e variações de proprietários que envolvem manipulações de documentos em cartórios e a conivência do poder público também marcaram a história da avenida e continuam fazendo parte dela.
O livro-reportagem se mostrou o formato mais adequado para a composição narrativa do grande repertório de acontecimentos que envolvem o caso do Bairro da Paz. O livro- reportagem deve ampliar a cobertura de um fato, que diferente da notícia diária, não precisa necessariamente estar ligado ao aspecto da atualidade. Além do tema escolhido, por sua intensa gama de acontecimentos e de interesse público, o modo de dizê-lo também foi uma condição que apontou o formato como um meio ideal de publicização do assunto tratado. É através do livro-reportagem que o dito pode se tornar mais fluido, como “o contar uma história”, que além do essencial, oferece detalhes importantes para a compreensão ampliada do tema tratado. Um livro é uma pertinente forma de construção e conservação de uma memória histórica da cidade e a prática jornalística é um meio importante de retratar um acontecimento de interesse público.
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